MILHARES SUCUMBIRAM DE FRIO, FOME, TORTURA E DOENÇAS CURÁVEIS; 50 ANOS DEPOIS, NINGUÉM FOI PUNIDO POR ESTE GENOCÍDIO.
Não se morre de loucura. Pelo menos em Barbacena. Na cidade do
Holocausto brasileiro, mais de 60 mil pessoas perderam a vida no
Hospital Colônia, sendo 1.853 corpos vendidos para 17 faculdades de
medicina até o início dos anos 1980, um comércio que incluía ainda a
negociação de peças anatômicas, como fígado e coração, além de
esqueletos. As milhares de vítimas travestidas de pacientes
psiquiátricos, já que mais de 70% dos internados não sofria de doença
mental, sucumbiram de fome, frio, diarréia, pneumonia, maus-tratos,
abandono, tortura. Para revelar uma das tragédias brasileiras mais
silenciosas, a Tribuna refez os passos de uma história de extermínio.
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Mulheres eram mantidas em condições subumanas. |
Tendo como ponto de partida as imagens do então fotógrafo da revista "O
Cruzeiro", Luiz Alfredo, publicadas em 1961 e resgatadas no livro
"Colônia", o jornal empreendeu uma busca pela localização de testemunhas
e sobreviventes dos porões da loucura 50 anos depois. A investigação,
realizada durante 30 dias, identificou a rotina de um campo de
concentração, embora nenhum governo tenha sido responsabilizado até hoje
por esse genocídio. A reportagem descortinou, ainda, os bastidores da
reforma psiquiátrica brasileira, cuja lei sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais, editada em 2001,
completa dez anos. As mudanças iniciadas em Minas alcançaram, mais
tarde, outros estados, embora muitas transformações ainda estejam por
fazer, conforme já apontava inspeção nacional realizada, em 2004, nos
hospitais psiquiátricos do país. A série de matérias pretende mostrar a
dívida histórica que a sociedade tem com os "loucos" de Barbacena, cujas
ossadas encontram-se expostas em cemitério desativado da cidade.
Criado pelo governo estadual, em 1903, para oferecer "assistência aos
alienados de Minas", até entã atendidos nos porões da Santa Casa, o
Hospital Colônia tinha, inicialmente, capacidade para 200 leitos, mas
atingiu a marca de cinco mil pacientes em 1961, tornando-se endereço de
um massacre. A instituição, transformada em um dos maiores hospícios do
país, começou a inchar na década de 30, mas foi durante a ditadura
militar que os conceitos médicos simplesmente desapareceram. Para lá
eram enviados desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães
solteiras, alcoolistas, mendigos, pessoas sem documentos e todos os
tipos de indesejados, inclusive, doentes mentais.
TREM DE DOIDO
Sem qualquer critério para internação, os deserdados sociais chegavam
a Barbacena de trem, vindos de vários cantos do país. Eles abarrotavam
os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a
Segunda Guerra, para os campo de concentração nazista de Auschwitz, na
Polônia. Os considerados loucos desembarcavam nos fundos do hospital,
onde o guarda-freios desconectava o último vagão, que ficou conhecido
como "trem de doido". A expressão, incorporada ao vocabulário dos
mineiros, hoje define algo positivo, mas, na época, marcava o início de
uma viagem sem volta ao inferno. Wellerson Durães de Alkmim, 59 anos,
membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de
Psicanálise, jamais esqueceu o primeiro dia em que pisou no hospital em
1975. "Eu era estudante do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em
Belo Horizonte, quando fui fazer uma visita à Colônia 'Zoológica' de
Barbacena. Tinha 23 anos e foi um grande choque encontrar, no meio
daquelas pessoas, uma menina de 12 anos atendida no Hospital de
Neuropsiquiatria Infantil. Ela estava lá numa cela, e o que me separava
dela não eram somente grades. O frio daquele maio cortava sua pele sem
agasalho. A metáfora que tenho sobre aquele dia é daqueles ônibus
escolares que foram fazer uma visita ao zoológico, só que não era tão
divertido, e nem a gente era tão criança assim. Fiquei muito impactado
e, na volta, chorei diante do que vi."
Esgoto era fonte de água de internos
Entrar na Colônia era a decretação de uma sentença de morte. Sem
remédios, comida, roupas e infraestrutura, os pacientes definhavam.
Ficavam nus e descalços na maior parte do tempo. No local onde haviam
guardas no lugar de enfermeiros, o sentido de dignidade era
desconhecido. Os internos defecavam em público e se alimentavam das
próprias fezes. Faziam do esgoto que cortava os pavilhões a principal
fonte de água. "Muitas das doenças eram causadas por vermes das fezes
que eles comiam. A coisa era muito pior do que parece. Cheguei a ver
alimentos sendo jogados em cochos, e os doidos avançando para comer,
como animais. Visitei o campo de Auschwitz e não vi diferença. O que
acontece lá é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício,
tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. Havia
um total desinteresse pela sorte. Basta dizer que os eletrochoques eram
dados indiscriminadamente. Às vezes, a energia elétrica da cidade não
era suficiente para aguentar a carga. Muitos morriam, outros sofriam
fraturas graves", revela o psiquiatra e escritor Ronaldo Simões Coelho,
80 anos, que trabalhou na Colônia no início da década de 60 como
secretário geral da recém-criada Fundação Estadual de Assistência
Psiquiátrica, substituída, em 77, pela Fundação Hospitalar do Estado de
Minas Gerais (Fhemig). A Fhemig continua responsável pela instituição,
reformulada a partir de 1980 e, recentemente, transformada em hospital
regional. Hoje, o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB)
atende um universo de 50 cidades e uma população estimada em 700 mil
pessoas.
CAPIM COMO CAMA
Os pacientes da Colônia, em sua maioria, dormiam no "leito único",
denominação para o capim seco espalhado sobre o chão de cimento, que
substituía as camas. O modelo chegou a ser oficialmente sugerido para
outros hospitais "para suprir a falta de espaço nos quartos."
Em meio a ratos, insetos e dejetos, até 300 pessoas por pavilhão
deitavam sobre a forragem vegetal. "O frio de Barbacena era um
agravante, os internos dormiam em cima uns dos outros, e os debaixo
morriam. De manhã, tiravam-se os cadáveres", contou o psiquiatra Jairo
Toledo, diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB).
Marlene Laureano, 56 anos, funcionária do CHPB desde os 20, era uma
espécie de faz-tudo. "Todas as manhãs, eu tirava o capim e colocava para
secar. Também dava banho nos pacientes, mas não havia roupas para
vestirem. Tinha um pavilhão com 300 pessoas para alimentar, mas só tinha
o suficiente para 30. Imagine! Só permaneci aqui, porque tinha a
certeza de que um dia tudo isso ia melhorar, sei que Deus existe."
SOBREVIVENTES PASSARAM A VIDA INTERNADOS
"Esse faleceu. Era uma delícia de pessoa. Essa morreu. Ela benzia a
gente. Lembra? Olha o Raul, que saudade. Essa era bem alegre. Esse homem
era engraçado, gostava de tomar conta das portas." Os comentários
deMarlene Laureano sobre os pacientes fotografados por Luiz Alfredo, em
1961, não deixam dúvida de que a história da Colônia tem na morte uma de
suas principais heranças. Sobreviver à Colônia é quase como confrontar o
improvável. José Machado, 80 anos, Sônia Maria da Costa, 61, Maria
Aparecida de Jesus, 71, e Antônio Sabino, 70, são alguns dos que
conseguiram. Institucionalizados há mais de meio século, resistiram a
fome, ao frio e ao tratamento desumano, mas carregam graves sequelas.
O registro de José Machado, o Machadinho, é de número 1.530. A
informação sobre ele que mais se aproxima da verdade, já que a maior
parte dos pacientes não tem qualquer registro sobre o seu passado, é de
que deu entrada na entidade em 1959, conduzido pela polícia, após ser
acusado de colocar veneno na bebida de alguém. Inocente, passou a vida
encarcerado. Hoje, aos 80 anos, precisa de uma cadeira de rodas para se
locomover, mantendo-se reticente na presença de estranhos.
Sebastiana Marques está em um dos cinco módulos residenciais
implantados no hospital para atender os pacientes com mais autonomia.
Com diagnóstico de esquizofrenia, mantém o hábito de ficar isolada e não
consegue se expressar. Já Sônia é uma exceção entre os sobreviventes.
Apesar de ter chegado ao hospital ainda criança, vive hoje em uma das 28
residências terapêuticas de Barbacena. Mudou-se para lá em 2003,
deixando para trás uma história de eletrochoques, agressões e medo. "Lá
no hospital judiavam muito da gente. Já apanhei muito, mas bati em muita
gente também. Como era agressiva, me deram muito choque. Agora tenho
comida gostosa, talheres e o principal: liberdade."
MUSEU É TRIBUTO ÀS VÍTIMAS
Atualmente 190 pacientes asilares estão sob a guarda do Centro
Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), mas sua sobrevida é
estimada em, no máximo, mais uma década. "Acredito que, em dez anos, o
ciclo dos porões da loucura se fecha", afirma o diretor Jairo Toledo,
referindo-se às últimas testemunhas daqueles tempos de horror. Maria
Cibele de Aquino, 68 anos, foi uma das baixas mais recentes. Clicada em
1961, aos 18 anos, por Luiz Alfredo, ela faleceu em 14 de setembro, na
companhia das bonecas que ninou durante toda uma vida de internação.
Chegou ao hospício aos 14 anos de idade e nunca saiu de lá.
Para que a memória não seja enterrada, o Museu da Loucura vai
continuar lembrando o que, convenientemente, poderia ser esquecido.
Idealizado por Jairo, o museu foi inaugurado, em 1996, no torreão do
antigo Hospital Colônia, e pretende ser um tributo às dezenas de
milhares de vítimas da lendária instituição. Dos cinco museus de
Barbacena, o que se dedica a contar a história da loucura é o mais
visitado por turistas.
Em 2008, a publicação do livro "Colônia", também organizado por
Jairo, expôs as feridas de uma tragédia silenciosa abafada pelos muros
do hospital. "Por mais duro que seja, há que se lembrar sempre, para
nunca se esquecer - como se faz com o holocausto - as condições
subumanas vividas naquele campo de concentração travestido de hospital.
Trazer à tona a triste memória dessa travessia marcada pela iniquidade e
pelo desrespeito aos direitos humanos é uma forma de consolidar a
consciência social em torno de uma nova postura de atendimento, gerando
uma nova página na história da saúde pública", afirmou o ex-secretário
de estado da saúde de Minas, o deputado federal Marcus Pestana.
(PSDB/MG). Foi ele quem viabilizou a tiragem de mil exemplares do livro
"Colônia."
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