Por Hudson Eygo
AMARANTE, Paulo. Saúde Mental
e Atenção Psicossocial – obra completa – Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2007.
Amarante, em Saúde Mental e
Atenção Psicossocial, livro publicado pela Editora Fiocruz no ano de
2007, discorre sobre a história da psiquiatria, contextualizando seu
enfrentamento ao transtorno mental. Partindo da descrição dos primeiros
hospícios, concebidos em moldes pinelianos, ele situa-nos no enfrentamento a
problemática da loucura, desde sua gênesis até a Reforma Psiquiátrica,
enfatizado, dentre outros episódios, a reforma Italiana e a contribuição de
Franco Basaglia para a superação do modelo manicomial.
Amarante defende que a visão banalizada, e por vezes, até mesmo
criminalizada de louco e de loucura não é fato recente. Segundo ele, a
sociedade vive um papel de antagonismo ao ser vítima e algoz do descaso que se
faz em relação ao transtorno mental. Tal concepção parte do ideal de alienismo,
onde, com a reclusão e o isolamento dos ditos loucos em asilos, a sociedade se
via salva da periculosidade e do risco social que o transtorno mental incitava
nas camadas sociais.
Essa visão deturpada que se faz do louco é fruto de séculos de descaso e
preconceito ao sofrimento mental, exercidos por uma sociedade que, desde a
implantação das primeiras instituições asilares, nega sua responsabilidade e
cumplicidade frente ao transtorno mental. Amarante cita a contribuição de
Pinel, sucessor do alienismo, na criação dos primeiros manicômios e implantação
da psiquiatria como ciência preocupada com a saúde mental. Além disso, ele
crítica a ambiguidade do contexto onde nasceram as primeiras instituições
asilares: em plena Revolução Francesa. Os ideais de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade pareciam utópicos e, por que não dizer mesquinhos, diante das
atrocidades cometidas contra seres humanos naqueles asilos psiquiátricos.
O autor denuncia a condição desumana em que viviam os pacientes nos
primeiros hospícios, cujo cuidado comparava-se ao dos campos de concentração e
de extermínio nazistas. Para Amarante, tais instituições eram verdadeiros
“depósitos de gente”, onde os pacientes pereciam em situação de completo
abandono, desprovidos de cuidados básicos como higiene e alimentação. O
compromisso com a saúde do portador de transtorno mental pela sociedade
resumia-se em apenas ignorá-los por completo. O enclausuramento de tais pessoas
em manicômios, privando-os do convívio social, parecia ser a melhor medida para
se isentar do problema.
Os questionamentos quanto à metodologia da psiquiatria frente ao
sofrimento mental no século XX só foram possíveis pela mudança na ordem social
e pela nova concepção de humanidade resultantes da segunda guerra mundial.
Nesse período, aconteceram diversas mudanças legislativas na atenção ao
transtorno mental em alguns países da Europa e nos EUA que, de acordo com o
autor, teriam influenciado positivamente o movimento antimanicomial brasileiro.
Dentre as medidas de enfrentamento ao sofrimento mental, Amarante cita a
iniciativa da Itália em extinguir os hospitais psiquiátricos e reorganizar o
seu modelo de políticas assistenciais ao portador de transtorno mental, visando
melhor qualidade de vida e inclusão das pessoas com sofrimento mental. Fatos que
culminaram com a institucionalização do dia 18 de maio como Dia Nacional da
Luta Antimanicomial no Brasil.
O autor alude a importância das práticas de Comunidades Terapêuticas e
da Psicoterapia Institucional, já praticadas na Itália e França, como estratégias
pioneiras dessa nova forma de fazer saúde mental e, segundo ele, tal
metodologia incitou a desistitucionalização manicomial brasileira. Tal
desistitucionalização foi, no Brasil, encabeçada por membros e representantes
da Psiquiatria de Setor, o que, por sua vez, resultou na criação de políticas
alternativas de enfrentamento ao transtorno mental. Tais medidas só foram
possíveis pela mobilização social de usuários dos serviços, familiares,
artistas, civis e profissionais da área que, sensibilizados com a causa,
organizaram-se e iniciaram a Luta Antimanicomial. O resultado disso é o que
hoje chamamos de Atenção Psicossocial. Uma medida do estado, em conjunto com a
psiquiatria, que acatando às novas diretrizes da OMS (Organização Mundial de
Saúde), viu a necessidade de rever a situação da loucura no país. Surgiram
dessa reformulação do serviço de saúde os Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS); as Residências Terapêuticas; as Cooperativas e os Centros de
Convivência.
Até o século XX não se pensava em políticas de enfrentamento do
transtorno mental, e o cuidado se resumia à reclusão e ao isolamento social dos
portadores de transtorno mental. O movimento nacional pela socialização e
inclusão dos usuários do serviço saúde de mental percorreu uma longa jornada e
enfrentou diversos desafios para a instauração e manutenção do modelo de saúde
mental que se presta hoje no Brasil.
Diante disso, fica clara a importância de continuar pensando a saúde
mental. O desafio agora é forjar na sociedade uma concepção distinta daquela
concebida anteriormente, de uma loucura inaceitável, violenta e que agride a
ordem social. Torna-se imprescindível dissociar a imagem de risco social que se
fez do louco. Não podemos nos isentar de nosso papel como cidadãos sociáveis e
corresponsáveis pela qualidade da saúde mental em nossas casas, nossos bairros,
nossas cidades e em nosso país. Quer sejamos favoráveis ou contrários frente ao
sofrimento mental, e às políticas nacionais de socialização de inclusão social
dos portadores de transtorno mental, conhecer a obra e a visão de Paulo
Amarante irá situar-nos historicamente frente aos fatos que fizeram da saúde
mental esse desafio que ela é hoje. É nesse quesito que a leitura de
Saúde Mental e Atenção Psicossocial torna-se uma experiência válida, pela forma
como o autor ilustra a problemática do transtorno mental no Brasil e mundo.
Paulo Amarante é Médico, Mestre em Medicina
Social pelo IMS/Uerj e Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz.
Texto originalmente publicado em: (EN)CENA



0 comentários:
Postar um comentário